29/05/2013 - 12:18
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A educadora Francisca Paula Toledo Monteiro trabalha com
alfabetização e letramento na Divisão de Educação Infantil e
Complementar da Unicamp. É professora de crianças na educação
complementar que estão em processo de alfabetização de seis a sete anos,
num trabalho de educação não formal, mas voltado ao letramento e à
alfabetização. Em seu mestrado, apresentado à Faculdade de Educação
(FE), há alguns anos, ela abordou as diferenças e subjetividades na
educação, tendo como foco o fracasso escolar. À época, ela questionou:
de quem afinal é o fracasso? Francisca atua com alfabetização desde os
17 anos e se confessa uma apaixonada pelo assunto. Ela foi partícipe e
se lembra muito de quando foi alfabetizada e garante que a alfabetização
avançou muito. Hoje não encerra mais a concepção de que quem ensina é o
professor e de quem aprende é o aluno. É preciso antes, salienta a
professora, conhecer o mundo. A educadora discutiu longamente a sua
experiência e relatou que a tendência atual é o desuso da letra cursiva,
ou de mão, em favor da letra bastão, que está largamente distribuída no
mundo: nos computadores, nos outdoors, nas faixas, nos painéis, nos comunicados e na correspondência comercial. Em entrevista ao Portal Unicamp,
Francisca comenta os desafios do professor e o importante papel da
criança como protagonista no processo, como leitora e como coautora de
sua própria história.
Portal Unicamp – Há responsáveis pelo fracasso escolar?
Francisca Paula Toledo Monteiro – A resposta é que existem demandas que as crianças nos trazem e às quais a escola não tem sido capaz de responder. Não quero, com isso, dizer que a responsabilidade seja exclusivamente dos professores, mas de todo um sistema, onde a sociedade evolui com as tecnologias e evolui nas formas de relações humanas. O que se verifica é que a escola se fecha nos muros da artificialidade. Assim, as demandas que as crianças trazem não são ouvidas e, se são ouvidas, são interpretadas pelo olhar do adulto e novamente reenquadradas dentro dos muros da escola, onde não há sentido, muitas vezes, e nem tem significado para as crianças. Daí o altíssimo nível de dificuldades na leitura e na escrita que encontramos no quinto e no sexto ano do ensino fundamental.
Portal – Talvez isso já tenha a ver com a alfabetização...
Francisca – Sim. A alfabetização no Brasil é muito deficitária, tanto que hoje nota-se um imenso número de crianças que são encaminhadas para as clínicas de fonoaudiologia e um imenso número de cursos de especialização em psicopedagogia e na própria alfabetização e letramento. Então, penso que a nossa formação pedagógica não dá a ênfase necessária às questões da alfabetização, isso não só técnica e linguística, mas também envolvendo o contexto da alfabetização.
Portal – Como você define alfabetização?
Francisca – Trata-se de um processo que se inicia com a leitura da palavra 'mundo', defendida por Paulo Freire, e com a compreensão, pelas crianças e pelas pessoas, da função social da leitura e da escrita. E isso está muito descontextualizado na escola. Toda a sinalização da instituição e todas as relações organizadas dentro dela deveriam ser feitas junto com as crianças: os bilhetes, os murais, os diários, as rotinas, os roteiros. Isso porque elas têm, aí, indícios da função social da leitura e da escrita, porque organizam o mundo dentro da escola, antes mesmo de desenharem as letras. Na verdade, no sistema linguístico, o alfabeto é o último reconhecimento que a criança faz na estrutura da palavra.
Portal – Qual seria o primeiro reconhecimento?
Francisca – Seria a palavra: o texto e o contexto. São as aquisições nas quais as crianças estão imersas culturalmente. Elas são constituídas pela linguagem desde que nascem. Então compreendem o sentido social da leitura e da escrita, porque são capazes, potentes e competentes, mesmo aquelas que têm dificuldades motoras ou de linguagem. Todas podem estar inseridas e cônscias de um contexto quando ele está devidamente desenhado. Por outro lado, se eu artificializo, há uma descontextualização. Quanto mais artificial, mais dificuldades o sujeito enfrentará para compreender as relações da escrita.
Portal – O que você chama 'artificializar'?
Francisca – Usar apostilas, trabalhos mimeografados, xerocopiados ou impressos, e bilhetes prontos que nem sempre são lidos, nem pelos professores. Não estou criticando o professor, e me incluo nisso, mas estou vendo que isso é resultado da pressa e do cumprimento de um currículo que não está voltado à criança. A organização dos espaços e dos tempos é dirigida ao próprio currículo ou à rotina do adulto, e não às crianças. Gastamos muito tempo organizando e pouquíssimo tempo com o repertório trazido pelas crianças.
Portal – O que seria ideal na alfabetização?
Francisca – Não creio no ideal e sim em ideais. Acredito que precisamos escutar as crianças, pois todo ano temos uma clientela diferente que chega, vinda de culturas diferenciadas, mesmo numa mesma cidade. Aposto numa construção em que se ouve muito o que as crianças têm a dizer e que enfatiza o estudo, porque precisamos conhecer os processos de aquisição da leitura e da escrita. Também não acho que a criança deva escrever do jeito que quer. Ela adquire, constrói o conhecimento, e o professor vai mediando e alargando o contexto cultural das crianças. Esta é a função da escola. Não é doutrinar e domesticar o aluno, mas auxiliá-lo a ampliar a sua visão de mundo e sua capacidade de sentir, pensar e agir sobre ele.
Portal – O que o professor ensina nos primeiros contatos com os alunos?
Francisca – Partimos da premissa de que a criança já teve contato com as letras e que já traz um conhecimento em sua bagagem. Mas quando estamos com ela, infelizmente esquecemos dessas suas experiências. Daí pensamos que o primeiro contato com as letras é na escola. Isso não é verdade. Mesmo tendo pais analfabetos, a criança tem conhecimento, uma vez que sai na rua, convive com pessoas e sempre tem alguém que é leitor na sua casa ou próximo dela. Então ela já chega tangendo alguns domínios. A alfabetização passa por vários processos. que seriam, entre outros, reconhecer que a criança é capaz e de que ela traz conhecimentos, além de trazer para dentro da sala de aula os textos, e não as palavras ou as sílabas e letras isoladas. O ambiente alfabetizador é aquele em que a criança participa de uma construção coletiva com seus colegas, com a professora, de textos que fazem sentido para ela: o bilhete que vai para a casa dele, o cardápio da escola, a rotina do dia na lousa. Daí ela começa a escrever, pois faz tentativas através do próprio jogo simbólico. Ela vai ensaiando a escrita e a leitura, já a partir de dois a três anos. Dentro da sala de aula, também é incentivada com a leitura feita pelo professor. Em alguns momentos, o educador funciona semelhantemente a um escriba. Enquanto as crianças vão produzindo os textos, o professor vai escrevendo por elas. A criança precisa, para escrever, saber que se escreve com letras, não com desenhos. Isso é feito pelo professor mediante comparações com livros, leituras, textos produzidos em conjunto. O professor mostra que há uma escrita em comparação a um desenho, a uma escultura. Logo, a própria criança vai reconhecendo e diferenciando.
Portal – Como é o reconhecimento inicial na alfabetização?
Francisca – A criança vai ao supermercado e lá observa, em grande medida, as letras. Ela grava isso, assim como as propagandas. Deste modo, para alfabetizar, podemos começar com os nomes que elas já conhecem. Criamos listas nas paredes ou fazemos para elas crachás. Assim vão reconhecendo os nomes ou textos mais próximos do seu cotidiano. Depois fazem tentativas de escrita. Também, a partir do estímulo do professor, a criança desenha e produz uma história. A seguir, vai passear e relatar seu passeio. Traz uma receita de casa e a professora a executa com as crianças. Escreve-a na lousa. Lê junto com os alunos. Pede à família que faça o mesmo. A criança vai então transcrever. Esse é parte do processo.
Portal – Quando se pode dizer que a alfabetização foi feita?
Francisca – A alfabetização não tem um início, meio ou fim. Ela não termina nunca. Tecnicamente alfabetizada está uma criança que já lê, compreende o que foi lido e pode se comunicar a partir de um bilhete. Ela não precisa conhecer as sílabas separadas, como reza a cartilha, que envolve um processo fragmentado. O nosso histórico, no passado, foi de fragmentação das disciplinas. É o que chamamos de um cartesianismo – ter uma linha contínua: começo, meio e fim, como se isso fosse possível. De outra via, reconheço que foi uma maneira de avançar nas ciências. Recortou-se o conhecimento a partir da Filosofia. Então Psicologia e Sociologia se originaram da Filosofia. Fragmentava-se, transformava-se o conhecimento em departamentos e em disciplinas para que isso fosse oferecido com a visão de um professor que sabe tudo e de um estudante que não sabe nada. Esta concepção permeava a alfabetização a partir da cartilha.
Portal – Você é contra a cartilha?
Francisca – Não uso a cartilha, o que não significa que tenho algo contra quem a adota. Penso apenas que fragmentar o conhecimento não ajuda porque a criança não conhece a parte para depois o todo, nem o ser humano. Conhecemos o todo e depois fragmentamos em partes aquilo que nos interessa, para reconstruir no novo todo. Cada professor parte de um princípio. Parto de ouvir a criança, trazer o letramento para a sala de aula, formar um ambiente letrado em que as escritas, as leituras e as oralidades são valorizadas.
Portal – Como a criança começa a desenhar as letras?
Francisca – Com dois a três anos, e em qualquer lugar. Na escola, ela começa a desenhar e, a partir desse desenho, o professor pode pedir-lhe para representar o que desenhou. Ela ensaia colocando letras. A professora pode deixar à mostra um alfabeto. Não há problema. Mas as minhas crianças nunca alfabetizaram porque conheciam o alfabeto. Eu acreditava piamente que as crianças tinham que reconhecer as letras para serem alfabetizadas, mas alfabetizei um menino sem que ele nomeasse sequer uma letra do alfabeto, nem as do nome dele. E ele se alfabetizou em apenas três meses.
Portal – Como isso acontece?
Francisca – A alfabetização se dá na interação do mundo letrado com a mediação de um professor, cuja concepção hoje é de que a compreensão e o contexto estão num texto. Não estão na fragmentação das palavras que, soltas de um contexto, como “o bebê babou”, não fazem sentido. “O vovô viu a uva” também não. Conosco foi assim, em outra época. Mas o mundo foi se transformando, se aprimorando. As dificuldades de aprendizagem aumentaram a tal ponto de as pesquisas se iniciarem com Paulo Freire, em 1960, já preocupado com o nível de analfabetismo porque a concepção que tínhamos – de sujeito que aprende e que ensina – não é o que acreditamos hoje.
Portal – Qual é a tendência na alfabetização?
Francisca – As pesquisas e o próprio trabalho que procuramos desenvolver nas creches é de que essa alfabetização é um processo que não se dá no primeiro ano só. É um trabalho contínuo. Cabe ao professor dominar alguns conhecimentos linguísticos, gramaticais e sociais para que ele não exclua nenhuma criança desse aprendizado e para que organize o seu fazer pedagógico. Agora o principal: é preciso mudar a concepção de ensino e de aprendizagem. As crianças são potentes, ativas e participativas. A alfabetização se dá num contexto cujo eixo é o texto, e não a letra e não a sílaba. Essa é uma convicção que trazemos da teorização de Paulo Freire, da leitura da palavra mundo, e das questões trazidas pela valorosa Emília Ferreiro, a partir da psicogênese da leitura e escrita. Não vejo como uma tendência. É uma mudança de paradigma: de criança como tábula rasa para um sujeito aprendiz com potencial e com conhecimento; e de uma concepção de que o professor é o detentor de todo saber, porque ele aprende muito enquanto ensina.
Portal – Como deve ser a postura do professor nesse modelo?
Francisca – Ele precisa ser observador, presente, e qualificar a criança potente. Deve instigá-la para saber mais. Um professor leitor, que lê muito para seus alunos e que tem uma boa entonação de voz, ele já está ensinando a criança o texto e a pontuação. Depois é só ele oferecer a técnica. A própria regra é construída com a criança, a partir de comparações: por que essa palavra eu leio assim e a outra de outro modo? Como numa poesia, por exemplo, a criança identifica as rimas? Todas essas são capacidades que o aluno vai adquirindo no contato com o professor e igualmente com a família.
Portal – Nesse processo, o que vem antes: a leitura ou a escrita?
Francisca – Em geral, a leitura precede a escrita. Mas uma coisa não exclui a outra, porém uma alfabetização meramente memorizada e copista vai gerar muitas vezes crianças copistas e que não boas produtoras de texto, que não têm a perspectiva da coautoria. Já tive alunos que precisei atender em aulas particulares que tinham cadernos perfeitos, mas que não liam uma palavra. Temos que desmistificar também que a criança só vai escrever bem quando ler. Não. Ela pode escrever sem ler.
Portal – O que pensa da ideia que permeia hoje de que a letra cursiva não vai existir mais, porque hoje o mundo é da letra bastão?
Francisca – Todas as letras são válidas, desde que a criança tenha a chance de se expressar. Se ela tem uma leitura proficiente, lerá em qualquer tipo de letra. O que é impensável é o professor ainda imaginar que uma criança está alfabetizada quando ela domina a letra cursiva. Isso é um mito e é algo que parte do senso comum. Isso já caiu por terra há muito tempo. Agora, a letra cursiva dificilmente é empregada no mundo e na escola. Qual é o problema da criança responder em letra de forma? Todas as informações são praticamente em letra bastão. Isso está no computador, nos outdoors, nos painéis, nos bilhetes que vão para a casa. O que ocorre é que não há uma grande utilidade mais. E se o computador estragar? É bom que se grafe com a própria letra. É um princípio da autonomia. Não preciso depender da máquina. Qual é o problema se a função da escrita e da leitura é a comunicação e a inserção social do sujeito? O importante é que a criança leia, interprete e consiga fazer o seu uso social. A letra no máximo precisa estar legível para que exerça a função da escrita e da leitura, que são a comunicação e a inserção social – representação subjetiva na minha ausência. Nem precisa estar bonita.
Portal - Os Estados Unidos anunciaram o fim do ensino da letra cursiva. E aqui?
Francisca – Creio que muitas coisas são decretadas porque demoramos muito para mudar. Às vezes isso causa um sofrimento desnecessário às crianças. Não há utilidade na letra cursiva nem em termos de coordenação motora, porque essa coordenação não é testada pela letra. Ela se dá na interação da criança com o mundo e com os outros. A criança que não tem autonomia, que a mãe, a berçarista ou a professora da creche dão tudo na boca e na mão, pode até fazer caligrafia, contudo, não vai desenvolver coordenação. A criança ganha autonomia no fazer, na construção do mundo.
Portal – Até quantos anos ela tem uma coordenação satisfatória?
Francisca – Isso varia. Agora se ela vive um ambiente que pode, com autonomia e segurança, se alimentar, se vestir, amarrar o tênis, recortar seu bilhete sozinha, ao invés de rasgar papelzinho e ficar treinando no papel, ela vai se desenvolver sem nenhum problema e vai chegar ao período de alfabetização, ou em qualquer período da vida dela, sem nenhuma dificuldade e sem nenhum comprometimento motor.
Portal – Essa coordenação poderá ajudar no quê?
Francisca – É um reflexo de toda a vivência corporal da criança, mas nos auxilia para tudo. Até para mudança de ponto de vista. A coordenação inclui tudo, até a capacidade óculo-visual, auditiva e cinestésica. A coordenação não é só para ler, para escrever e para digitar no computador. Envolve a confecção de trabalhos manuais e sobretudo a organização da própria rotina. A criança descoordenada normalmente também está descoordenada no seu tempo e no espaço. A coordenação não é pela mão. Ela vem de dentro para fora e de fora para dentro. É o social junto com o pessoal.
http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/05/29/alfabetizacao-letra-bastao-tende-substituir-letra-de-mao
Portal Unicamp – Há responsáveis pelo fracasso escolar?
Francisca Paula Toledo Monteiro – A resposta é que existem demandas que as crianças nos trazem e às quais a escola não tem sido capaz de responder. Não quero, com isso, dizer que a responsabilidade seja exclusivamente dos professores, mas de todo um sistema, onde a sociedade evolui com as tecnologias e evolui nas formas de relações humanas. O que se verifica é que a escola se fecha nos muros da artificialidade. Assim, as demandas que as crianças trazem não são ouvidas e, se são ouvidas, são interpretadas pelo olhar do adulto e novamente reenquadradas dentro dos muros da escola, onde não há sentido, muitas vezes, e nem tem significado para as crianças. Daí o altíssimo nível de dificuldades na leitura e na escrita que encontramos no quinto e no sexto ano do ensino fundamental.
Portal – Talvez isso já tenha a ver com a alfabetização...
Francisca – Sim. A alfabetização no Brasil é muito deficitária, tanto que hoje nota-se um imenso número de crianças que são encaminhadas para as clínicas de fonoaudiologia e um imenso número de cursos de especialização em psicopedagogia e na própria alfabetização e letramento. Então, penso que a nossa formação pedagógica não dá a ênfase necessária às questões da alfabetização, isso não só técnica e linguística, mas também envolvendo o contexto da alfabetização.
Portal – Como você define alfabetização?
Francisca – Trata-se de um processo que se inicia com a leitura da palavra 'mundo', defendida por Paulo Freire, e com a compreensão, pelas crianças e pelas pessoas, da função social da leitura e da escrita. E isso está muito descontextualizado na escola. Toda a sinalização da instituição e todas as relações organizadas dentro dela deveriam ser feitas junto com as crianças: os bilhetes, os murais, os diários, as rotinas, os roteiros. Isso porque elas têm, aí, indícios da função social da leitura e da escrita, porque organizam o mundo dentro da escola, antes mesmo de desenharem as letras. Na verdade, no sistema linguístico, o alfabeto é o último reconhecimento que a criança faz na estrutura da palavra.
Portal – Qual seria o primeiro reconhecimento?
Francisca – Seria a palavra: o texto e o contexto. São as aquisições nas quais as crianças estão imersas culturalmente. Elas são constituídas pela linguagem desde que nascem. Então compreendem o sentido social da leitura e da escrita, porque são capazes, potentes e competentes, mesmo aquelas que têm dificuldades motoras ou de linguagem. Todas podem estar inseridas e cônscias de um contexto quando ele está devidamente desenhado. Por outro lado, se eu artificializo, há uma descontextualização. Quanto mais artificial, mais dificuldades o sujeito enfrentará para compreender as relações da escrita.
Portal – O que você chama 'artificializar'?
Francisca – Usar apostilas, trabalhos mimeografados, xerocopiados ou impressos, e bilhetes prontos que nem sempre são lidos, nem pelos professores. Não estou criticando o professor, e me incluo nisso, mas estou vendo que isso é resultado da pressa e do cumprimento de um currículo que não está voltado à criança. A organização dos espaços e dos tempos é dirigida ao próprio currículo ou à rotina do adulto, e não às crianças. Gastamos muito tempo organizando e pouquíssimo tempo com o repertório trazido pelas crianças.
Portal – O que seria ideal na alfabetização?
Francisca – Não creio no ideal e sim em ideais. Acredito que precisamos escutar as crianças, pois todo ano temos uma clientela diferente que chega, vinda de culturas diferenciadas, mesmo numa mesma cidade. Aposto numa construção em que se ouve muito o que as crianças têm a dizer e que enfatiza o estudo, porque precisamos conhecer os processos de aquisição da leitura e da escrita. Também não acho que a criança deva escrever do jeito que quer. Ela adquire, constrói o conhecimento, e o professor vai mediando e alargando o contexto cultural das crianças. Esta é a função da escola. Não é doutrinar e domesticar o aluno, mas auxiliá-lo a ampliar a sua visão de mundo e sua capacidade de sentir, pensar e agir sobre ele.
Portal – O que o professor ensina nos primeiros contatos com os alunos?
Francisca – Partimos da premissa de que a criança já teve contato com as letras e que já traz um conhecimento em sua bagagem. Mas quando estamos com ela, infelizmente esquecemos dessas suas experiências. Daí pensamos que o primeiro contato com as letras é na escola. Isso não é verdade. Mesmo tendo pais analfabetos, a criança tem conhecimento, uma vez que sai na rua, convive com pessoas e sempre tem alguém que é leitor na sua casa ou próximo dela. Então ela já chega tangendo alguns domínios. A alfabetização passa por vários processos. que seriam, entre outros, reconhecer que a criança é capaz e de que ela traz conhecimentos, além de trazer para dentro da sala de aula os textos, e não as palavras ou as sílabas e letras isoladas. O ambiente alfabetizador é aquele em que a criança participa de uma construção coletiva com seus colegas, com a professora, de textos que fazem sentido para ela: o bilhete que vai para a casa dele, o cardápio da escola, a rotina do dia na lousa. Daí ela começa a escrever, pois faz tentativas através do próprio jogo simbólico. Ela vai ensaiando a escrita e a leitura, já a partir de dois a três anos. Dentro da sala de aula, também é incentivada com a leitura feita pelo professor. Em alguns momentos, o educador funciona semelhantemente a um escriba. Enquanto as crianças vão produzindo os textos, o professor vai escrevendo por elas. A criança precisa, para escrever, saber que se escreve com letras, não com desenhos. Isso é feito pelo professor mediante comparações com livros, leituras, textos produzidos em conjunto. O professor mostra que há uma escrita em comparação a um desenho, a uma escultura. Logo, a própria criança vai reconhecendo e diferenciando.
Portal – Como é o reconhecimento inicial na alfabetização?
Francisca – A criança vai ao supermercado e lá observa, em grande medida, as letras. Ela grava isso, assim como as propagandas. Deste modo, para alfabetizar, podemos começar com os nomes que elas já conhecem. Criamos listas nas paredes ou fazemos para elas crachás. Assim vão reconhecendo os nomes ou textos mais próximos do seu cotidiano. Depois fazem tentativas de escrita. Também, a partir do estímulo do professor, a criança desenha e produz uma história. A seguir, vai passear e relatar seu passeio. Traz uma receita de casa e a professora a executa com as crianças. Escreve-a na lousa. Lê junto com os alunos. Pede à família que faça o mesmo. A criança vai então transcrever. Esse é parte do processo.
Portal – Quando se pode dizer que a alfabetização foi feita?
Francisca – A alfabetização não tem um início, meio ou fim. Ela não termina nunca. Tecnicamente alfabetizada está uma criança que já lê, compreende o que foi lido e pode se comunicar a partir de um bilhete. Ela não precisa conhecer as sílabas separadas, como reza a cartilha, que envolve um processo fragmentado. O nosso histórico, no passado, foi de fragmentação das disciplinas. É o que chamamos de um cartesianismo – ter uma linha contínua: começo, meio e fim, como se isso fosse possível. De outra via, reconheço que foi uma maneira de avançar nas ciências. Recortou-se o conhecimento a partir da Filosofia. Então Psicologia e Sociologia se originaram da Filosofia. Fragmentava-se, transformava-se o conhecimento em departamentos e em disciplinas para que isso fosse oferecido com a visão de um professor que sabe tudo e de um estudante que não sabe nada. Esta concepção permeava a alfabetização a partir da cartilha.
Portal – Você é contra a cartilha?
Francisca – Não uso a cartilha, o que não significa que tenho algo contra quem a adota. Penso apenas que fragmentar o conhecimento não ajuda porque a criança não conhece a parte para depois o todo, nem o ser humano. Conhecemos o todo e depois fragmentamos em partes aquilo que nos interessa, para reconstruir no novo todo. Cada professor parte de um princípio. Parto de ouvir a criança, trazer o letramento para a sala de aula, formar um ambiente letrado em que as escritas, as leituras e as oralidades são valorizadas.
Portal – Como a criança começa a desenhar as letras?
Francisca – Com dois a três anos, e em qualquer lugar. Na escola, ela começa a desenhar e, a partir desse desenho, o professor pode pedir-lhe para representar o que desenhou. Ela ensaia colocando letras. A professora pode deixar à mostra um alfabeto. Não há problema. Mas as minhas crianças nunca alfabetizaram porque conheciam o alfabeto. Eu acreditava piamente que as crianças tinham que reconhecer as letras para serem alfabetizadas, mas alfabetizei um menino sem que ele nomeasse sequer uma letra do alfabeto, nem as do nome dele. E ele se alfabetizou em apenas três meses.
Portal – Como isso acontece?
Francisca – A alfabetização se dá na interação do mundo letrado com a mediação de um professor, cuja concepção hoje é de que a compreensão e o contexto estão num texto. Não estão na fragmentação das palavras que, soltas de um contexto, como “o bebê babou”, não fazem sentido. “O vovô viu a uva” também não. Conosco foi assim, em outra época. Mas o mundo foi se transformando, se aprimorando. As dificuldades de aprendizagem aumentaram a tal ponto de as pesquisas se iniciarem com Paulo Freire, em 1960, já preocupado com o nível de analfabetismo porque a concepção que tínhamos – de sujeito que aprende e que ensina – não é o que acreditamos hoje.
Portal – Qual é a tendência na alfabetização?
Francisca – As pesquisas e o próprio trabalho que procuramos desenvolver nas creches é de que essa alfabetização é um processo que não se dá no primeiro ano só. É um trabalho contínuo. Cabe ao professor dominar alguns conhecimentos linguísticos, gramaticais e sociais para que ele não exclua nenhuma criança desse aprendizado e para que organize o seu fazer pedagógico. Agora o principal: é preciso mudar a concepção de ensino e de aprendizagem. As crianças são potentes, ativas e participativas. A alfabetização se dá num contexto cujo eixo é o texto, e não a letra e não a sílaba. Essa é uma convicção que trazemos da teorização de Paulo Freire, da leitura da palavra mundo, e das questões trazidas pela valorosa Emília Ferreiro, a partir da psicogênese da leitura e escrita. Não vejo como uma tendência. É uma mudança de paradigma: de criança como tábula rasa para um sujeito aprendiz com potencial e com conhecimento; e de uma concepção de que o professor é o detentor de todo saber, porque ele aprende muito enquanto ensina.
Portal – Como deve ser a postura do professor nesse modelo?
Francisca – Ele precisa ser observador, presente, e qualificar a criança potente. Deve instigá-la para saber mais. Um professor leitor, que lê muito para seus alunos e que tem uma boa entonação de voz, ele já está ensinando a criança o texto e a pontuação. Depois é só ele oferecer a técnica. A própria regra é construída com a criança, a partir de comparações: por que essa palavra eu leio assim e a outra de outro modo? Como numa poesia, por exemplo, a criança identifica as rimas? Todas essas são capacidades que o aluno vai adquirindo no contato com o professor e igualmente com a família.
Portal – Nesse processo, o que vem antes: a leitura ou a escrita?
Francisca – Em geral, a leitura precede a escrita. Mas uma coisa não exclui a outra, porém uma alfabetização meramente memorizada e copista vai gerar muitas vezes crianças copistas e que não boas produtoras de texto, que não têm a perspectiva da coautoria. Já tive alunos que precisei atender em aulas particulares que tinham cadernos perfeitos, mas que não liam uma palavra. Temos que desmistificar também que a criança só vai escrever bem quando ler. Não. Ela pode escrever sem ler.
Portal – O que pensa da ideia que permeia hoje de que a letra cursiva não vai existir mais, porque hoje o mundo é da letra bastão?
Francisca – Todas as letras são válidas, desde que a criança tenha a chance de se expressar. Se ela tem uma leitura proficiente, lerá em qualquer tipo de letra. O que é impensável é o professor ainda imaginar que uma criança está alfabetizada quando ela domina a letra cursiva. Isso é um mito e é algo que parte do senso comum. Isso já caiu por terra há muito tempo. Agora, a letra cursiva dificilmente é empregada no mundo e na escola. Qual é o problema da criança responder em letra de forma? Todas as informações são praticamente em letra bastão. Isso está no computador, nos outdoors, nos painéis, nos bilhetes que vão para a casa. O que ocorre é que não há uma grande utilidade mais. E se o computador estragar? É bom que se grafe com a própria letra. É um princípio da autonomia. Não preciso depender da máquina. Qual é o problema se a função da escrita e da leitura é a comunicação e a inserção social do sujeito? O importante é que a criança leia, interprete e consiga fazer o seu uso social. A letra no máximo precisa estar legível para que exerça a função da escrita e da leitura, que são a comunicação e a inserção social – representação subjetiva na minha ausência. Nem precisa estar bonita.
Portal - Os Estados Unidos anunciaram o fim do ensino da letra cursiva. E aqui?
Francisca – Creio que muitas coisas são decretadas porque demoramos muito para mudar. Às vezes isso causa um sofrimento desnecessário às crianças. Não há utilidade na letra cursiva nem em termos de coordenação motora, porque essa coordenação não é testada pela letra. Ela se dá na interação da criança com o mundo e com os outros. A criança que não tem autonomia, que a mãe, a berçarista ou a professora da creche dão tudo na boca e na mão, pode até fazer caligrafia, contudo, não vai desenvolver coordenação. A criança ganha autonomia no fazer, na construção do mundo.
Portal – Até quantos anos ela tem uma coordenação satisfatória?
Francisca – Isso varia. Agora se ela vive um ambiente que pode, com autonomia e segurança, se alimentar, se vestir, amarrar o tênis, recortar seu bilhete sozinha, ao invés de rasgar papelzinho e ficar treinando no papel, ela vai se desenvolver sem nenhum problema e vai chegar ao período de alfabetização, ou em qualquer período da vida dela, sem nenhuma dificuldade e sem nenhum comprometimento motor.
Portal – Essa coordenação poderá ajudar no quê?
Francisca – É um reflexo de toda a vivência corporal da criança, mas nos auxilia para tudo. Até para mudança de ponto de vista. A coordenação inclui tudo, até a capacidade óculo-visual, auditiva e cinestésica. A coordenação não é só para ler, para escrever e para digitar no computador. Envolve a confecção de trabalhos manuais e sobretudo a organização da própria rotina. A criança descoordenada normalmente também está descoordenada no seu tempo e no espaço. A coordenação não é pela mão. Ela vem de dentro para fora e de fora para dentro. É o social junto com o pessoal.
http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/05/29/alfabetizacao-letra-bastao-tende-substituir-letra-de-mao